Ela enfrentou medos e desafios para se formar paraquedista ao longo de dez anos e com menos de 300 saltos, tornou-se recordista sulamericana de FQL
Por Leticia “Lela” Silva
Lela se prepara para um salto durante o recorde / Foto: Renan Seccomandi;
Eu comecei no esporte por causa de um ex-namorado que era paraquedista. Morávamos em Ubatuba e ele decidiu largar o paisagismo e trabalhar como piloto tandem. Assim passei a frequentar com mais assiduidade – leia-se todo final de semana – a área de Boituva.
Nesse período eu via os paraquedistas voltando dos saltos com um sorriso que não cabia no rosto. Foi quando meu ex me perguntou se eu queria fazer o curso AFF e eu resolvi experimentar com mais profundidade esse novo mundo.
Já tinha feito dois duplos e acreditei que poderia ser legal estar envolvida no esporte também, pois afinal estava abrindo mão de um sonho (morar na praia de Itamambuca) para acompanhá-lo aos finais de semana. Seria uma forma de fazer algo interessante ao invés de ficar sentada só olhando. O que eu mal sabia era que essa escolha mudaria completamente a minha vida.
Vida nova, novos sonhos, novos desafios
O relacionamento acabou, me tornei paraquedista, enfrentei o desafio de superar barreiras internas gigantes, naveguei um mar de aprendizados e autoconhecimento sem fim, e conquistei novos sonhos.
Eu me lembro do meu primeiro salto do AFF e dos pensamentos que me vinham na cabeça: “será que serei capaz de fazer TUDO que tem que ser feito com tanto neurotransmissor em colisão no meu cérebro?”. Sim, fui e tive minha primeira catarse de felicidade. Aprendi que quando estou muito feliz, eu choro, e que nem sempre chorar é de tristeza. Começava ali meu despertar para conhecer uma Valeria que eu não fazia ideia de quem fosse. Os amigos do meu ex-namorado vinham correndo no alvo dizendo: Parabéns PQD! E eu só conseguia chorar e mal me sustentava sob minhas próprias pernas.
Parei o meu AFF no quinto salto em meados de 2012. Sentia muito medo daquilo tudo.
Principalmente de perder o controle nas cambalhotas sem nenhum instrutor me segurando.
Fiquei oito meses parada. Até que optei por pelo menos terminar o curso. Afinal, começar algo e parar no meio não era do meu feitio. #sqn!
Hoje sei que era minha alma me empurrando para o encontro de uma versão de mim mesma muito melhor do que aquela que eu conhecia. E essa versão eu agarrei com unha e dentes. Terminei o curso e estava decidida a superar aquela fase difícil dos 30 e poucos primeiros saltos aonde tudo era apavorante. Pra mim pelo menos. A partir dos 30 até os 60 saltos, pós Cat B, tudo ficou um pouco mais leve e passei a me desafiar mais. Fui para novas áreas, busquei os mestres do FQL (Pedro San e Renatinho Diogo – Prime) para começar na modalidade que me encantava. Fiz treino no túnel de Goiânia e com a Bia Ohno nos EUA. Apenas ia seguindo em frente, me deixando levar pela onda da superação pessoal.
BigWay na proa
A partir de então, quando ia pra área, ficava assistindo aos briefings de BigWay na quadra pensando o quão maravilhosa era aquela união e confiança que cada um tem em si e nos demais. Um verdadeiro espirito de equipe.
Em 2014 vi de longe as meninas treinando para o recorde feminino, e também de longe observava o time de 4 way feminino Ladies First. Aos poucos foi nascendo dentro de mim um sonho. O sonho de estar num recorde feminino. E um dia, quem sabe, num time de 4 way feminino. Eram apenas sementes sendo brotadas no meu coração. Eu sabia que a jornada seria longa.
Em 2016, a Maiá me apresentou o Igor Ueoka. Ele estava montando um grupo para iniciantes e iniciados de BigWay (o TMJ). Foi a minha escola no skydive. Sou eternamente grata por tudo que o Igor me ensinou sobre a técnica de BigWay mas foi o olhar gentil dele para minha maior dificuldade que me fez dar um passo importante: confiar. Me joguei de cabeça nos treinos e lembro perfeitamente das palavras do Igor. Firmes e precisas como se fosse hoje: “Lela, você tem a técnica necessária para estar no próximo recorde feminino, mas precisa melhorar seu psicológico”.
Lela em entrevista para Batoque Filmes durante o evento / Foto Batoque Filmes/Tamires Minnozi;
Skydive e meus desafios internos
Minha frequência de salto era baixa e o medo, depois de algumas experiências com pouso mais desafiantes, me limitava. Eu sabia das minhas barreiras mentais mas seguia em frente, superando-as aos poucos e aprendendo mais sobre mim mesma em doses homeopáticas a cada salto de BigWay que fazia. Algumas vezes recuei também. Cheguei a ficar alguns meses sem saltar. Mas sempre voltava! E quando voltava, eu sentia que estava mais forte por que a semente do sonho dentro do coração crescia. Eu via os recordes acontecendo, amigas e amigos participando, mas não ousava participar por que sabia que tinha baixa frequência de salto. E ainda não estava preparada praquilo.
Os anos foram passando e eu sempre me questionando sobre o que me impulsionava para frente naquela rota incerta ao desconhecido. Até que veio a pandemia e desta vez quase decidi parar de saltar. Aposentar as asas. Foi quando eu fiquei sabendo do projeto “Só Pra Elas”. Meu coração vibrou de alegria. Com elas eu pude ser eu mesma, me olhar de frente, olho no olho e falar para mim mesma: “Vai! Só vai!”.
Fui em todos os encontros, retomei a terapia (para acabar de vez com meu auto boicote), fiz cursos de pousos, me preparei fisicamente e me permiti ser feliz por estar vivendo o processo de me tornar uma pessoa mais forte, mais segura, mais eu mesma. Foram quase dois anos de uma jornada linda com mulheres excepcionais ao meu lado. Entre elas a Bia, Flavia, Erika, Debs, Jessica, Maiá, Lidi e Patche. Nessas, eu podia me espelhar, aprender e, literalmente de mãos dadas, me realizar fazendo exatamente o que eu queria fazer e me tornar.
No final de Outubro de 2022, num casamento de um amigo PQD, ouvi as palavras mágicas que fizeram todas as chaves internas que precisavam ser viradas, virarem. Como sempre, nosso mestre Pedro San, disse exatamente o que precisava ser dito na hora certa e com poucas palavras: Lela, você precisa confiar em você. Entendido, japa!
Alivio com Catarse
No último treino em Novembro de 2022, no último salto do dia, o avião estava na pista de decolagem mas teve que voltar por causa de um weather hold.Quando o avião foi liberado, eu olhava para as nuvens ainda carregadas no céu e me perguntei se deveria ir mesmo. Na porta, perguntei pro Renan Secomandi se tudo bem irmos com esse CBzão ai do lado? Ele olhou no meu olho e repetiu com outras palavras o que eu já tinha ouvido uma vez: Confia. E fui! Confiei! Enfrentei o desconhecido. Consegui fazer o que tinha que ser feito. Eu sabia o que fazer. O grito de alivio e de superação veio das entranhas quando estava a caminho da dobragem. Estava vencendo o medo de perder o controle.
Seleção para o seleto grupo
Veio a convocação para batermos o recorde de 2014 (que tinha sido um 34 way). A felicidade de saber que estava convocada para o time principal fez meu coração explodir de felicidade. Precisava segurar a ansiedade. Tinha chegado a hora de viver o sonho, mas ainda tinha a convocação final para o salto.
Não fui convocada. Fiquei no banco e eu sabia exatamente o porquê. Não podiam arriscar nada, tinham que ir com tudo logo no primeiro dia por conta da previsão do tempo. Respirei fundo. Claro que senti um aperto no peito. Respirei de novo e pensei: “eu estou aqui vivendo uma experiência espetacular, elas me conhecem, sabem o que fazem e eu tenho que fazer a minha parte se precisarem de mim”. Calma.
Treinamos com o Pedro o dia todo. Saltos maravilhosos. O Renan dizia a cada salto: Dêem o máximo de vocês para ajudar as meninas a aumentar o recorde, elas vão fechar e vão precisar de vocês. O 37 way saiu no quarto salto do primeiro dia. E enquanto isso, os últimos retoques estavam sendo milimetricamente arquitetados para o 48 way. Algo dentro de mim estremecia com a ideia de participar de um 48 way, mas um outro lado meu me dizia: “estou tendo a chance de me preparar para isso, o recorde já está conquistado, e se me chamarem é por que estarei pronta”. Chamaram!
E a chance veio
Lembro na sala de embarque eu dizendo para Erikão (Erika Correa): “estamos indo para um treino”, e ela sorrindo, disse: “indo pro treino mais importante da vida”. E eu só fui.
Fechamos de primeira e o sonho se realizou. Desta vez, o cérebro bugou com tanto neurotransmissor. Eu brinloquei no pouso. As alturas do altímetro sonoro estavam erradas e eu entrei alto no ponto B. Confiei no altímetro sonoro mesmo, sabendo que ele estava errado. Poderia ter tomado melhores decisões na navegação, poderia ter dado ruim, mas deu bom! E de novo veio a mensagem pelas bocas da Flavinha: “Lela, confia em você”.
E desta vez eu fiz questão de mostrar para mim mesma que eu tinha aprendido a lição. Subi no dia seguinte determinada a fazer o meu melhor pouso da vida, e fiz (quase no alvo) simplesmente por que agora eu sei e confio em mim. Eu sou uma paraquedista mulher, num esporte que a maioria é homem. Apenas 10% dos mais de 3500 atletas inscritos na CBPq.
E sou recordista sulamericana de FQL.
Lela, Aline Souto e Luciana Silveira / Foto: Batoque Filmes/Tamires Minnozi;
Amor e vida Que projeto LINDO: mulheres cuidando umas das outras para que todas estivessem prontas e preparadas para o grande dia. Não foi fácil. Todo mundo ralou e teve que se superar de alguma forma. Foi singelo, humano, sublime. Desejo do fundo de minha alma, que essas mulheres ma-ra-vi-lho-sas continuem pegando na mão de cada uma que precisa de ajuda para lutar e vencer todas as batalhas internas e externas. Conhecidas e desconhecidas. Ou aquelas que surgem inesperadamente nas vésperas do grande dia, para que todas possam realizar os seus sonhos.
Que o projeto “Só Pra Elas” continue e sirva de inspiração para muitas mulheres e deixe um legado lindo de amor. Para que venham outros sonhos, outros recordes, e que venha mais da vida para todos.
É sobre isso! Amor e vida. E ninguém solta a mão de ninguém.